quarta-feira, 6 de abril de 2011

Justificação de Crenças Memoriais e Auto-conhecimento


 Justificação de Crenças Memoriais e Auto-conhecimento

       Na epistemologia da memória contemporânea se requer como condição necessária, embora não suficiente, que para haver conhecimento memorial, as crenças memoriais, crenças fundadas adequadamente através da faculdade da memória sejam justificadas epistemicamente, pelo menos sob a perspectiva de uma justificação internalista, que diga respeito à fatores internos à vida mental de um agente cognitivo qualquer. Neste ensaio, discutiremos as características essenciais da justificação de crenças memoriais analisando e discutindo as teorias da justificação mais comuns, sejam as mesmas internalistas ou externalistas, e as conseqüências que tais teorias trazem para a epistemologia da memória de uma maneira geral. Em um segundo momento, se trará à baila para o debate questões relativas ao auto-conhecimento, e em que medida a justificação memorial conecta-se com o mesmo no sentido da auto-atribuição de conhecimento a estados mentais passados e presentes.
        Comecemos falando um pouco sobre o fundacionismo, a mais comum das teorias da justificação, que tem por finalidade principal, sob a égide do Trilema de Agripa, evitar o problema do regresso epistêmico postulando a existência de crenças básicas de fundo em um sistema de crenças de um sujeito S. Podemos, segundo Thomas Senor, distinguir essencialmente entre dois tipos de teorias fundacionistas de justificação de crenças memoriais, a saber, o fundacionismo simples e o fundacionismo experiencial. O primeiro afirma que toda crença memorial, justamente em virtude de possuir tal natureza, é justificada prima facie: a memória não é simplesmente um repositório para a crença, mas sim um mecanismo gerador para a justificação (posição esta adotada, por exemplo, por Robert Audi (AUDI, R. (2003), p. 71-72).1 Já o fundacionismo experiencial exige que a crença memorial seja acompanhada por uma imagem ou, pelo menos, por uma memória “aparente” experiencial para que seja justificada, tal como uma teoria representacional da memória, que faz apelo a algum tipo de imagem e/ou representação mental. Ao se fazer essa exigência do recurso pictórico como condição suficiente, mas não necessária para a lembrança proposicional, a lembrança factiva e de verdades segundo a Teoria Epistemológica da Memória (TEM), tal concepção implica que a justificação de uma crença memorial requer a presença de algum tipo de experiência para que a memória seja justificada2. Tal experiência, dada apenas a suficiência e a não necessidade de que a mesma seja imagística, mas sim representacional, deve ser uma experiência fenomenológica na vida mental do sujeito cognitivo, no sentido de haver uma descrição fidedigna do conteúdo mental desta experiência.    
        A plausibilidade tanto de uma das variações do fundacionismo apresentadas quanto da outra vai depender, basicamente, do tipo de justificação epistêmica que está se procurando nesse contexto. Se o sujeito S estiver comprometido com uma conexão forte com a verdade e julgar que a crença que está justificada deve ser, de algum modo significativo, provavelmente verdadeira, então a adoção de qualquer uma das versões fundacionistas parece estar fora de questão. A razão para esta argumentação é que não há necessariamente uma relação entre o armazenamento e a recordação de uma crença, seja esta veiculada por uma memória aparente ou não, e a probabilidade de que tal crença seja verdadeira. Contudo, disto não se segue que a memória não seja geralmente um processo cognitivo confiável, mas tal confiabilidade é, na melhor das hipóteses, condicional: salvo em casos excepcionais, as crenças recordadas por S provavelmente serão verdadeiras apenas se o processo de formação das mesmas for um processo confiável, ponto este que será exposto logo a seguir, quando se irá tratar do confiabilismo da memória e também da possibilidade de uma justificação externalista. O fundacionismo simples acabará fornecendo condições para uma justificação internalista que minimize a conexão entre o fato de uma crença estar justificada e de ser verdadeira, residindo talvez nesse ponto uma das distinções mais fundamentais entre ambas as modalidades de fundacionismo apresentadas e discutidas.
          Em relação ao fundacionismo experiencial, uma das dificuldades centrais do mesmo é que ele considera apenas o status justificatório das crenças memoriais ocorrentes, o que está condicionado à imagem ou representação mental já referida. Isso faz com que quase todas as nossas crenças não sejam justificadas ou epistemologicamente não consideradas, pois é razoável supor que temos muito mais crenças não ocorrentes do que ocorrentes em nossas vidas mentais. Pode-se pensar que tal problema é resolvido apelando-se para contra-factuais ou disposições para crer, e mesmo apelando para o recurso metafísico de considerar distintos tokens para o mesmo type, no sentido de que uma crença armazenada na memória poderia ser interpretada como justificada prima facie se essa crença em questão se tornasse ocorrente, onde ela estaria acompanhada pela imagem ou representação adequada. Mas tal condição parece ser falsa, uma vez que a fenomenologia da lembrança depende crucialmente do contexto no qual a crença é recordada, onde normalmente a experiência memorial que se tem ao recordar do conteúdo de uma determinada crença depende, pelo menos, dentre outros fatores, de quanta atenção está sendo dedicada a esta crença no momento desta recordação e de quais outras crenças são então ocorrentes na vida mental do sujeito que crê.
          Tais particularidades acerca das teorias fundacionistas da justificação memorial remetem a uma exposição e discussão das teorias coerentistas, onde basicamente encontramos dois tipos de coerentismo, o positivo e o negativo. O primeiro alega que a crença memorial será justificada se ela possuir uma relação coerente suficientemente forte com o sistema de crenças de S. Tal espécie de coerência demanda mais do que uma mera ausência de conflitos doxásticos, devendo, de alguma forma, ser sustentada para tornar-se provável nesse sistema.3 O coerentismo negativo, por outro lado, defende que haja apenas uma ausência de conflito doxástico no sistema de crenças para que uma crença memorial seja justificada. Nesse sentido, parece haver uma semelhança muito grande entre esta concepção de coerentismo com o fundacionismo simples, pois ambos alegam que não havendo a presença de derrotadores (defeaters) no sistema de crenças memoriais, estas estão justificadas.4 As duas variações destas teses coerentistas visam formular uma teoria da justificação tanto para crenças memoriais ocorrentes quanto preservadas na memória, algo que o fundacionismo experiencial, por exemplo, não dá conta. Mas há problemas também com o coerentismo: o principal deles para a versão do coerentismo positivo, por exemplo, é o chamado “problema da evidência perdida” (“problem of forgotten evidence”), onde uma crença pode estar positivamente coerente com o sistema de crenças de S no momento da sua formação, mas em um instante posterior não conseguir coerir positivamente, mesmo que intuitivamente ela permaneça justificada no tempo. Thomas Senor fornece o seguinte exemplo e conseqüente explicação a fim de ilustrar este ponto:

                                                                       Um sujeito pode ter tido, em algum momento, uma rede de crenças sobre a história norte-americana, com a qual estava perfeitamente coerente a crença de que Lincoln fora assassinado no Teatro Ford. No entanto, muitos anos após sua última aula de história, essa crença pode permanecer enquanto grande parte da rede subjacente já desaparecera. Mesmo assim, intuitivamente, ela ainda é justificada. O coerentista pode ainda responder a esse problema alegando que ainda há uma rede justificatória: a crença é uma crença memorial e é possível que um sujeito possa acreditar que a maioria de suas crenças memoriais sejam verdadeiras; portanto, essa crença é igualmente provável de ser verdadeira e, dessa forma, justificada. O problema com essa resposta é que ela funciona para praticamente qualquer crença memorial; se esse artifício for consentido, então toda crença memorial será justificada prima facie. Ou seja, aceitar essa solução para o problema da evidência esquecida significa trocar a teoria da coerência positiva por sua irmã negativa. (SENOR, T., 2009)5

          Um problema tanto para o coerentismo negativo quanto para o fundacionismo simples é que quando da formação da crença em t1, no passado, onde a mesma não estava justificada, ela adquire justificação em t2 pelo simples fato de se manter armazenada e conservada na memória. Eis aqui um ponto importante e relevante para a discussão, pois parece que tanto as versões apresentadas do fundacionismo quanto as do coerentismo carecem da mesma falha comum, a saber, de serem teorias sincrônicas ao invés de diacrônicas no tempo quando se considera a distinção entre crenças memoriais ocorrentes e não ocorrentes. Tanto o fundacionismo quanto o coerentismo consideram para o status justificatório de uma crença memorial apenas o estado interno atual no momento da formação da crença, a justificação seria apenas função deste elemento internalista do sujeito cognoscente quando o mesmo passa a tomar tal conteúdo de sua atitude doxástica como verdadeiro. As únicas propriedades relevantes para a justificação de uma crença memorial, sob a perspectiva destas teorias, são propriedades não históricas, e que não dizem respeito a fatos que o sujeito teve contato no momento de aquisição da crença.
          Suponha que S venha a crer, de modo inseguro e sem nenhuma razão aparente para tanto, que o ex-presidente norte-americano John Kennedy gostava de beber chá verde. No momento da formação desta crença, S não está justificado em crer nessa proposição. Entretanto, quando S adquirir justificação apara esta crença e esta se tornar na vida mental dele uma crença memorial, as condições de justificação da mesma serão, no presente, totalmente diferentes. Para um coerentista negativo, por exemplo, se não houver defeaters (derrotadores epistêmicos) para tal crença, ela estará justificada. Então, no dia seguinte a formação desta crença, quando S acreditar que Kennedy gostava de chá verde, a crença de S estará justificada, uma vez que não há razão alguma (ou evidência) que a derrote ou anule. Também no fundacionismo experiencial há um problema nesse caso, pois se S crê falsamente que leu em algum lugar que Kennedy gostava de chá verde, quando de fato não leu, ele não tem justificação para essa crença; mas se S tiver uma forte convicção de que suas crenças “históricas” baseiam-se em publicações e notícias respeitáveis a que teve acesso, esse seu vício epistêmico de sempre crer irrepreensivelmente nessas fontes transformam uma crença injustificada (ou não justificada) em justificada. O mesmo aplica-se para o coerentismo positivo também: alguém que sempre acredita que suas crenças históricas são oriundas de fontes de informação respeitáveis e que acredita ter uma determinada crença histórica irá ter um sistema de crenças no qual seja coerente que Kennedy gostasse de chá verde, mas disso não se segue que tal crença adquira justificação pelo simples fato de ter se mantido armazenada desde sua formação em t1 até sua evocação como crença memorial em t2.
         O que esse exemplo mostra é que, sob algumas circunstâncias, o fato de uma crença memorial ser justificada em t2, no presente, depende, ao menos parcialmente, de se ela era justificada antes, no passado, em t1. Uma teoria deontológica da justificação, de cunho basicamente internalista, poderia dar conta do diacronismo no tempo entre as crenças ocorrentes e não ocorrentes (preservadas na memória), trazendo um elemento sincrônico ao falar das noções de responsabilidade e de deveres epistêmicos, onde o que importaria, na verdade, é o cumprimento do dever agora, no sentido do agente cognitivo fazer o melhor que pode na sua atitude doxástica, e não o que poderia ter feito quando da formação da crença em outro tempo que não este atual. Se em t2, no presente, S crê sincera e irrepreensivelmente que Kennedy gosta de chá verde, e se também acredita que essa crença foi gerada a partir de uma fonte respeitável, então estará fazendo o melhor que pode e possivelmente deve se julgar deontologicamente justificado na sua crença memorial. Mas tal justificação deontológica também pode apresentar um problema de natureza ética especialmente se tomarmos o imperativo moral de que dever implica poder: se fosse assim, então uma incapacidade no nível da ação, sob o ponto de vista sincrônico, seria moralmente justificável, o que é algo bastante duvidoso e polêmico, sem entrar nos detalhes de tal problemática. Grosso modo, as teorias internalistas da justificação para crenças memoriais, de modo geral, apresentam dificuldades conceituais, especialmente no que se refere ao problema do diacronismo/sincronismo das crenças memoriais ocorrentes/não ocorrentes. Se o internalismo, a princípio, não consegue gerar uma explicação plausível para a justificação das crenças memoriais, então discutiremos brevemente agora o externalismo, particularmente uma teoria da justificação epistêmica que se baseie no confiabilismo.
          De maneira resumida, a tese confiabilista alega que uma crença está justificada se ela for um produto de um processo confiável formador de crenças. Dessa forma, pode-se afirmar que uma crença memorial está justificada se ela for o produto de um processo memorial confiável. Pressupondo-se que o confiabilismo opera com a hipótese de trabalho de ser um processo propenso a gerar verdades, e não meramente um registro ocioso de etapas de tal processo, então se pode dizer que a confiabilidade do processo é uma propriedade sincrônica do mesmo. Mas desta consideração não se segue que o confiabilista não leve em conta na justificação da crença memorial ocorrente o status anterior do caráter preservativo desta. Para Goldman, por exemplo, o confiabilista entenderá a memória como um “processo dependente de crenças“ (GOLDMAN, A, 1979), onde o input desse processo é uma crença, e uma crença memorial será justificada somente se o processo memorial na qual foi formada for confiável e se a mesma era justificada quando da sua formação no passado, mantendo com isso o caráter diacrônico do processo. Para o confiabilismo, o status justificatório de uma crença memorial ocorrente é, normalmente, uma função do status justificatório dessa crença em um momento anterior, pelo menos parcialmente. O ponto aqui é o aspecto conservador ou preservador da memória, do qual se falou de forma breve até aqui, e que agora procuraremos explorar um pouco mais: a justificação para a crença memorial ocorrente, em t2, será dada se e somente se havia justificação para tal crença em t1, no momento de sua aquisição, e entre t1 e t2 não se adquiriu informações novas que pudessem ditar o status justificatório para a crença em t2. A memória, diferentemente da percepção, que pega inputs não doxásticos e gera crenças no agente cognitivo S de forma involuntária, tem de levar em conta o histórico da formação da crença na vida mental de S a fim de delinear o seu status epistêmico: tal fato é relevante para a descrição do aspecto preservativo da memória e da justificação como um processo ocorrendo entre t1 e t2. Na percepção, há uma espécie de involuntarismo doxástico na formação das crenças perceptuais que não se dá no caso das crenças memoriais: S não pode não ter vontade de crer que esteja percebendo visualmente diante de si uma árvore florida, por exemplo, ao contrário da crença memorial de lembrar-se de ter visto tal árvore num tempo passado.
          A teoria preservativa da memória alega que há um elemento chave diacrônico para a justificação das crenças memoriais. Não visão preservativa, toma-se a memória tanto como conservadora da crença quanto da justificação: uma crença que não teve justificação quando da sua formação em t1, não terá justificação a ser conservada entre t1 e t2, e será injustificada também quando da sua recordação, precisamente em t2 (ou seja, no tempo em que estiver “ocupando” a memória)6. Embora o preservacionista possa consentir que a memória seja fonte geradora de justificação quando também gera uma nova crença, ele insistirá que, quando a memória age somente para conservar a crença, ela não é um processo epistemologicamente gerador. Alguns epistemólogos clássicos defendem este ponto de vista, como Audi, por exemplo, que é bastante explícito nessa questão, ao colocar que a memória não gera crença, justificação e conhecimento, exceto no sentido de que, ao se utilizar o que se tem na memória, adquire-se crença e conhecimento inferencialmente (AUDI, 2003, p.71). Este ponto é bastante relavante e importante, e recentemente há pesquisas alegando que a memória possa ser geradora de crença, justificação e conhecimento, o que viria a abalar as estruturas da visão preservacionista. Jennifer Lackey, por exemplo, apresentou críticas e contra-exemplos à esta visão mostrando casos em que, em t1, S tem uma crença justificada prima facie de que P que pode ser derrotada , mas que com o tempo perde esse elemento anulador, e em t2 possui uma crença justificada ultima facie de que P. Dito de outro modo, em t1 a crença não está justificada, mas em t2 ela adquire justificação, mesmo que  S não tenha adquirido nenhuma evidência nova em relação a P, podendo a memória gerar justificação epistêmica e conhecimento nesses casos.7
          Para concluir este tópico acerca das teorias de justificação das crenças memoriais, há que se fazerem algumas considerações acerca do aspecto da confiabilidade da memória e da importância fundamental desta questão: os epistemólogos da memória, de maneira geral, independente de serem internalistas ou externalistas, fundacionistas, coerentistas ou confiabilistas, concordam em um ponto comum, a saber, de que a confiabilidade da memória é crucial e condição necessária para que haja conhecimento memorial. Pouco se duvida de que, dentro de certos parâmetros, possa haver evidência desta confiabilidade: para se elaborar um argumento que não seja da forma de um simples silogismo, obrigatória e necessariamente depende-se da confiabilidade da memória para as etapas iniciais e suas justificações (e mesmo na inferência dedutiva, tal processo é necessário, pois como se atentou anteriormente, raciocinar leva tempo, e para lembrar-se dos passos anteriores, têm-se de recorrer à memória). Logo, se alguém deseja desenvolver qualquer coisa além de argumentos simples para a confiabilidade da memória, e mesmo nesses casos, isso significa que qualquer argumento dessa natureza será influenciado por uma espécie de circularidade, a de que só é possível elaborar algum dependendo da confiabilidade da memória. Da incapacidade de se desenvolver um argumento não circular para a memória não se segue que esta não seja confiável: William Alston (1986), por exemplo, argumentou de forma razoavelmente convincente que todos os processos epistêmicos básicos compartilham de uma característica em comum, a saber, a de que a confiabilidade dos mesmos não pode ser demonstrada sem circularidade. Contudo, ainda assim não resta outra opção a não ser confiar neles e não devemos considerar nossa incapacidade de fornecer um argumento não circular como uma forma de refutá-los. Devemos, portanto, sob estes aspectos, confiarmos com forte convicção, sob alguns aspectos fundamentais, e desde que não haja elementos suficientemente persuasivos do contrário, na memória como faculdade cognitiva confiável, independente da teoria epistemológica que adotemos e defendemos.
                                                                                                                                                                     Sobre a relação do conhecimento memorial com o auto-conhecimento, surge um problema fundamental a ser investigado, já encaminhando uma conclusão geral e indicando os passos para uma pesquisa futura: o auto-conhecimento básico, aquele entendido como crença de segunda ordem auto-justificada ou uma crença introspectiva, compreendida aqui como uma crença sobre conteúdos mentais, e de segunda ordem se for causada por outra crença, como uma crença perceptual de primeira ordem, por exemplo, parece requerer apenas que crenças ocorrentes contem como casos de auto-conhecimento. Só pode ser objeto de auto-conhecimento básico a crença ocorrente em t2 referente a crenças e conteúdos mentais apreendidos em t1, no passado, excluindo-se com isso toda a gama de memórias e lembranças que se referem às crenças justificadas sobre conteúdos apreendidos no passado. Segundo Tyler Burge, a função da memória preservativa garantiria o status de conhecimento para as auto-atribuições realizadas por S em um tempo passado, t1, o que aparentemente solucionaria tal problemática. Nas palavras de Burge,

                                                                        [...] a memória não precisa ser sobre um evento ou conteúdo passado. Ela pode simplesmente, ao preservar o pensamento passado, conectá-lo ao pensamento presente. Estes casos envolvem um tipo especial de função da memória - a memória preservativa - que preserva o conteúdo proposicional e a atitude relacionada a ele, em vez de se referir aos objetos, atitude, conteúdos, imagens ou eventos. 8


         Dado que a memória preservativa funciona apenas conectando crenças ocorrentes com crenças não ocorrentes sobre o passado (ou, falando em termos de conteúdo mental também, de pensamentos atuais com pensamentos passados) sem identificar os mesmos com objetos particulares, o seu bom funcionamento anularia a diferença de perspectiva temporal, garantindo com isso que auto-atribuições no passado incluam as crenças das quais tratam. Quando, em t2, S crê que em t1 tinha uma crença que P, através de cadeias causais bem formadas, a memória preservativa faz a conexão entre as crenças atuais, ocorrentes, com as crenças memoriais do passado não ocorrentes, garantindo que o conteúdo das mesmas seja o mesmo tanto em t1 quanto em t2. Essas cadeias causais necessariamente têm de ser o caso, onde a memória preservativa, para Burge, é um pressuposto da racionalidade, pois como já foi colocado anteriormente, para realizar inferências o sujeito deve operar temporalmente, tendo em mente os passos anteriores, condição esta garantida através da confiabilidade da memória preservativa como método de retenção de conteúdos mentais e de atitudes proposicionais.9
         A noção de memória preservativa também é relevante para o auto-conhecimento de atitudes passadas, como o caso da crença memorial de que P em t1, por exemplo. Para Tyler Burge, a função cognitiva da memória preservativa é a de reter tanto conteúdos quanto atitudes de pensamentos anteriores, onde o seu modelo compatibilista da perspectiva externalista com a individuação de conteúdo e de atitudes proposicionais, por exemplo, é bem sucedido ao explicar o auto-conhecimento em relação ao passado10. Tal modelo burgeano é bem sucedido para casos, por exemplo, em que conteúdo e atitude de auto-atribuição são equivalentes à crença e ao pensamento original. Porém, não se segue que todo auto-conhecimento seja desta natureza: Sven Bernecker, por exemplo, argumenta que se identidade de conteúdo e de atitude fosse requisito para todo tipo de auto-conhecimento, este seria muito raro, principalmente em casos flexionados no passado. Tal argumentação berneckeriana baseia-se no fato de que o auto-conhecimento diacrônico apóia-se na memória, e esta não é um dispositivo passivo de reprodução de conteúdo e de atitude, é um dispositivo ativo que processa tais conteúdos e atitudes estocados na mente11. Uma das conseqüências desta perspectiva remete a pelo menos dois pontos importantes, a saber, de que para expressar a mesma crença, ou o mesmo conteúdo de tal crença, a memória precisa modificar o conteúdo passado, e de muitas lembranças não se referirem a um pensamento ou crença em particular, mas a um modo de pensar e crer num determinado período de tempo, como entre t1 e t2, o que requer uma discussão e análise mais fina e precisa acerca dos aspectos sincrônicos e diacrônicos do auto-conhecimento e do conhecimento memorial, por exemplo. Estes são, contudo, temas para investigação futura, exigindo muita pesquisa ulterior e avançada.


Referências Bibliográficas
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BONJOUR, Laurence. The Structure of Empirical Knowledge, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985.

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GOLDMAN, Alvin. What is Justified Belief? In: PAPPAS, George (ed.), Justification and Knowledge, Dordrecht: D. Reidel, p. 1-23, 1979.

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HARMAN, Gilbert. Change in View, Cambridge, MA: MIT Press. Chapter 4, 1986.

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McGRATH, Matthew. Memory and Epistemic Conservatism. Synthese, 157, 2007, p. 1-24.

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SENOR, Thomas D. Preserving Preservationism: A Reply to Lackey. Philosophy and Phenomenological Research, 74(1), 2007, p. 199-208. 




1 Conforme a sua seção em que trata da memória como fonte de conservação e geração. Audi coloca que “o sentido da memória consegue gerar justificação em virtude da maneira pela qual a proposição ou even-evento em questão ocorrem” (“The sense of memory can generate justification by virtue of the way the  proposition or event in question occurs to one”, p. 72). Também Michael Huemer defende, grosso modo, esta concepção de justificação memorial em “The Problem of Memory Knowledge” (1999).
2 Thomas Senor, em seu artigo de 1993, apresenta uma discussão crítica sobre essas duas variedades de fundacionismo. Já Robert Schroer (2008), por exemplo, defende ambas as concepções. Huemer simpatiza a princípio com tal visão, embora ao fim e ao cabo vá propor um modelo dualista para a justificação memorial que dê conta tanto da aquisição de justificação nas circunstâncias de t1, no passado, quanto na experiência memorial presente, em t2.

3 Ver particularmente a posição de Bonjour nesse caso: embora tal epistemólogo não discuta teorias da justificação na epistemologia da memória em particular, sua posição é a do coerentismo positivo para a justificação memorial (ver, por exemplo, o seu artigo de 1985, “The Structure of Empirical Knowledge”).  Posteriormente, ele irá rejeitar o coerentismo que outrora defendia em outros domínios epistêmicos, assumindo o fundacionismo clássico nos moldes do fundacionismo cartesiano. Para maiores detalhes deste ponto, ver BONJOUR, L. Epistemology (Cap. 8), (2002), p. 183-184. 
4 Um dos maiores expoentes de defesa do coerentismo negativo, também conhecido como conservadorismo epistêmico, é Gilbert Harman (HARMAN, G. Change in View, 1986). Na mesma linha argumentativa ver também, por exemplo, McGRATH, M (2007). O coerentismo negativo está presente em praticamente todas as teorias de justificação epistêmicas, sendo, em certo sentido, redundante na maior parte das vezes
5 One might have once had a web beliefs about American history with which the belief that Lincoln was assassinated in Ford Theatre neatly cohered. Yet years after having had one's last history class, this belief might remain while much of the imbedding web was disappeared. Yet, intuitively, it is still justified. The coherentist might hope to reply to this problem by claiming that there is still a justificatory web: the belief is a memory belief and one might believe that most of one's memory beliefs are true; therefore, this belief is likely to be true and is hence justified. The problem with this response is that it works for just any memory belief; if this gambit is allowed, then every memory belief will be prima facie justified. That is, accepting this solution to the problem of forgotten evidence amounts to trading in positive coherence theory for its negative sister. (SENOR, T. D. (2009, 04/09). Epistemological problems of memory, seção 4.2. In E. N. Zalta (Ed.), Stanford Encyclopedia of Philosophy.  Metaphysics Research BIBLIOGRAFIA 270 Lab, CSLI, Stanford University. http://plato.stanford.edu/entries/memory-episprob).


6 Explicações seguindo um modelo preservacionista para a memória podem ser encontradas, por exemplo, em Audi, R. (1998, 2003), Dummett, M. (1994), Goldman, A. (1999) e Plantinga, A. (1993). Sven Bernecker, por sua vez, refere um principio de justificação contínua (principle of ongoing  justification) (2007, p. 143), em que a justificação é adquirida em t1, e mantém-se no tempo ininterruptamente até o momento da lembrança, em t2. A crença memorial de S de que P é continuamente justificada se e somente se S continuar a crer que P em t2 mesmo se S perder a evidência original em t1 e não tiver adquirido nenhuma nova evidência entre t1 e t2.
7 Lackey propõe, como um dos cernes de sua argumentação, uma distinção conceitual entre os derrotadores (defeaters), como os derrotadores normativos e doxásticos, a fim de propor um modelo de geração de justificação para as crenças memoriais e também para o conhecimento.

8 [...] Memory need not be about a past event or content. It may simply preserve the past thought to connect it to this thought. These cases involve a special type of memory function - memory preservative - which preserves the propositional content and attitude related to him, instead of referring to objects, attitude, content, images or events. BURGE, Tyler. Memory and self-knowledge. In P. LUDLOW & N. MARTIN (Eds.). Externalism and self- knowledge. Stanford: CSLI Publications, 1998, p 357.

9 Há um sentido óbvio no uso da memória, aquele em que se deve fazer menção e referência à mesma enquanto recurso cognitivo como forma de acesso à outras fontes informacionais e de conhecimento, e que tacitamente estava implícita desde o início da discussão. Contudo, o aspecto preservativo da memó-ria, tanto em relação ao conteúdo mental quanto às crenças geradas por esta faculdade, é um componente complexo e não trivial da mesma, e é sob esta perspectiva que está se tratando neste contexto.
10 BURGE, Tyler. Memory and self-knowledge. In P. LUDLOW & N. MARTIN (Eds.). Externalism and self- knowledge. Stanford: CSLI Publications, 1998, p 357.
11 BERNECKER, Sven. Self-knowledge and the bounds on authenticity. Erkenn, 71, 2009, p. 111

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